FULANA NO INFERNO
classificado no concurso de contos da hama editora, XIV bienal do livro rj
Fulana chorava.
A mãe, há dias no hospital, não tinha mais ninguém para cuidar dela. E a filha, única herdeira, ficava lá, o tempo inteiro, como se estivesse internada junto, impedida de se afastar por um só instante.
Mas não havia nenhuma esperança: a velhinha já estava desenganada pelos médicos e deveria entrar logo em fase terminal.
— Não chore, minha filha! — dizia, com um fio de voz.
Fulana, sentada no sofá ao lado, chorava aos prantos.
A mãe, cheia de sondas enfiadas pelo corpo, passava os dias gemendo. E a filha, varando noites e noites, virando a velha de um lado para o outro:
“Até quando?”, pensava. “Até quando?”
— Minha filha, não chore! Todos nós temos um tempo, e eu já esgotei o meu...
Fulana, debulhada em lágrimas, soluçava. Mas em seu choro desbragado não havia nenhuma tristeza pela morte iminente da mãe. Não. Isso não existia.
“Ódio!”
Ela era obrigada a ficar ali.
“Que ódio!”
E este sentimento vinha das vísceras.
”Tomara que morra logo, a desgraçada!”, praguejava em silêncio, voraz e feroz. Não aguentava mais aquela situação.
“Podre!”, ruminava entredentes. E essa palavra não lhe saía da cabeça. “Podre!”. O cheiro e o estado da velha. Noites maldormidas. Tempo perdido. Dinheiro posto fora.
Fulana destilava veneno.
A herança, que há tanto esperava, começava a ser gasta, antes mesmo de ser sua, naquele inferno de hospital.
E a velha não morria nunca. Triste e agonizante, olhava para a filha, com piedade. Não gemia mais. A única coisa que conseguia, já sem forças, era balbuciar:
— Pobre filha...
Um dia, por motivos econômicos, foram transferidas para um modesto quarto. E a fulana, estirada sobre uma poltrona suja, rasgada e fedendo a mofo, com asco e ódio de estar ali, berrava como uma porca e babava igual a uma vaca, chorando convulsivamente:
“Podre!”
— Pobre filha!
Tempos depois a herança acabava, totalmente consumida nas diárias daquele inferno de hospital.
E a velhinha passou a ocupar um leito, lá embaixo, na enfermaria dos indigentes. A filha, sem ter mais para onde ir, forjou um lugar no canto do corredor e ali passou dias e noites, como bicho acuado, ruminando um ódio mortal.
Certa manhã, ao entrar naquela enfermaria, uma faxineira se assustou com o silêncio da velha. Sentiu, no ar, a presença da morte. Procurou a enfermeira-chefe e, não encontrando, correu a avisar no plantão, olhos arregalados:
— Morreu! A velha morreu!
Imediatamente vieram as enfermeiras, examinaram a mãe, trocaram o soro, enfiaram-lhe os anestésicos e sedativos e saíram sem perceber que, estirada numa cadeira, lá no fundo do corredor, era a filha da mãe quem estava morta. Pobre e podre.
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